Conhecimentos e competências têm valor quando necessários às situações vividas

junho 29, 2017 | por Luciano Bitencourt

Bruno Latour, antropólogo francês, define informação como uma “inscrição de um lugar em outro”. Aquilo que é material e está “solto” pelo mundo só tem como se tornar visível a todos quando inscrito em um lugar acessível. Em outras palavras, quando planejamos uma viagem e usamos o Street View para reconhecer pontos que interessam visitar ou quando usamos um GPS para buscar formas de chegar a ele, estamos, na concepção de Latour, utilizando um “centro de cálculo” que reúne toda uma “rede de transformações” cuja logística nos permite relacionar um lugar (o mapa) com outro (o ponto escolhito numa cidade para visitar).

Nesse sentido, o mapa, usado como referência no Street View e no GPS, é resultado de uma cartografia que envolve múltiplas referências, inúmeras compilações de dados, coerência entre diferentes elementos usados no “mundo dos signos” para dar visibilidade ao “mundo das matérias”. Na concepção de Latour, o mapa não nos leva imediatamente ao lugar que ele quer representar. Antes, nos leva ao esforço de “redução” e de “ampliação” capaz de nos fazer reconhecê-lo.

O esforço é resultado da conexão de muitas instituições por trás da validação, digamos, dessas inscrições. Instituições que são responsáveis por várias expedições sucessivas de exploração em muitos campos diferentes para concentrar informações que representam a realidade que conhecemos. Como resultado desse esforço, o mapa é uma “redução” do espaço eficientemente calculada para nos dar possibilidades concretas de localização. Ao mesmo tempo, é uma “ampliação formidável” das possibilidades de interpretação, reconhecimento, compreensão quanto ao potencial de exploração dos lugares que ele representa. Quer dizer, nos permite estudar no “mundo dos signos” para saber o que fazer e como agir no “mundo das matérias”.

Num certo sentido, as noções de realidade passam pela circulação de diferentes inscrições entre o lugar que se quer, grosso modo, conhecer e o “centro de cálculo”, entre o representado e o representante, entre a complexa rede de transportes coletivos de uma grande metrópole, por exemplo, e o mapa que mostra como ela funciona. Diz Latour em Redes que a Razão Desconhece:

“Todos os lugares do mundo, por mais diferentes que sejam, ganham, através do mapa, uma coerência ótica que os torna comensuráveis. Por serem todos planos, os mapas podem ser sobrepostos, e permitem, portanto, comparações laterais com outros mapas e outras fontes de informação, que explicam esta formidável ampliciação própria dos centros de cálculo. Cada informação nova, cada sistema de projeção favorece todos os outros”.

 

Saber fazer e saber agir

No mundo corporativo, via de regra, a cultura de registrar e organizar informações tem se consolidado. As dificuldades residem, justamente, na implementação de processos que garantam uma certa “coerência ótica”, como diz Latour, entre as múltiplas referências com as quais uma organização se depara. É fato que qualquer decisão a ser tomada depende do conjunto de informações que se tem sobre aspectos importantes e envolvem os desafios a serem superados. E os mapas são fundamentais para isso.

Em se tratando de educação, num certo sentido, a qualificação da aprendizagem está na relação entre os saberes e as capacidades de atuação. Alguém consegue mostrar que sabe quando age, mesmo que respondendo de forma abstrata a uma questão. Contudo, os sistemas educacionais tradicionalmente relacionam os saberes com o acúmulo de conteúdos de abordagens compulsórias, no sentido de empurrar para frente a capacidade de se usar os recursos inerentes a esses saberes em situações nas quais são necessários.

Fazendo uma analogia, nós sabemos que a água potável é um recurso limitado e que, sem os devidos cuidados, algum dia não haverá distribuição suficiente para todos. As causas desse problema são muitas e bastante conhecidas. O enfoque, ao tratar do tema, se confinado ao problema, pode não inspirar soluções para mudar o cenário. Podemos saber o que é preciso fazer sem termos a capacidade de agir para que a água não venha a faltar num futuro próximo.

Saber o que fazer é uma parte do processo e o ambiente corporativo pede resultados rápidos, propõe uma certa tangibilidade em quaisquer de suas atividades. As de cunho educativo estão incluídas. A questão é entender que se pode mensurar aspectos relacionados aos saberes necessários para agir com muito mais facilidade do que avaliar a atuação em contextos específicos.

É possível propor formas de treinamento e preparar as pessoas para agir em determinadas circunstâncias. Mas isso não garante que elas saibam agir no momento adequado. Os esquemas de ações que usamos para projetar situações podem até ser os mesmos usados para agir concretamente. Mas uma projeção só se torna factível com ações concretas e as variáveis numa situação real são imprevisíveis. As experiências de um treinamento não são idênticas a de situações vividas concretamente. Ainda que similares, as atuações requeridas esbarram no fato de que nas simulações os riscos são todos controlados.

 

Simulações e situações vividas

A “coerência ótica” quanto aos subsídios para lidar com essa dualidade depende de um mapeamento capaz de oferecer a sobreposição dos saberes e esquemas de ações, dos conhecimentos e competências necessários para a atuação desejada em um dado momento. Mais que isso, esses mapas sobrepostos, além de coerentes e visivelmente articulados, devem inspirar atividades em que se possa mensurar o quanto se deve saber e que desempenho é satisfatório para tangibilizar o que foi planejado.

Há, entretanto, um aspecto essencial nos processos educativos em quaisquer de suas dimensões. Como todo o mapa é resultado de sucessivas expedições e de interpretações quanto à sua representatividade, a qualificação da aprendizagem exige a exploração e a aceitação de margens de erro no momento da atuação propriamente dita, não só no treinamento.

O treinamento é sempre uma “redução”, como sugere Latour, de situações a serem exploradas em novas expedições, “ampliadas” no momento da atuação. Prepara o terreno, oferece “coerência ótica” sobre o que é necessário para essa preparação e experiências controladas para simular a realidade. Já as experiências em situações vividas são sempre mais ricas do que as adquiridas em treinamento. Justamente porque são mais complexas, exigem muito mais recursos e envolvem riscos que não têm como ser controlados.

Quando se estrutura projetos educativos e se avalia o desempenho a partir do que se propôs qualificar em termos de aprendizagem, é importante distinguir o saber fazer do saber agir. Se, como já dissemos, conhecimento é o que não se esquece e competência é o que se reconhece na atução em situações vividas, ambos podem ser entendidos como “inscrições” que transitam entre o “mundo dos signos” e o “mundo das matérias”.

Em outras palavras, aquilo que dá coerência aos mapas não está no que ele mostra, mas na relação com o mundo que ele representa. Mapas de conhecimentos e de competências seguem o mesmo princípio.

Luciano Bitencourt

Formado em Jornalismo, é professor universitário daquela graduação há mais de 15 anos. Já atuou como repórter e participou de diversos projetos na área. É sócio-proprietário da Akademis.