Múltiplas experiências e aprendizagens para saber agir

junho 13, 2017 | por Luciano Bitencourt

No mundo mediado pelas tecnologias digitais tudo é exponencial. Do que imaginamos ser possível às perspectivas de resultado que multiplicam ganhos em tempo cada vez menor, o universo digital em que estamos mergulhados nos leva a crer que as capacidades que temos desenvolvido até agora não dão conta de responder aos dilemas que enfrentamos em todas as esferas da vida. E essa é uma ideia tão estimulante quanto desanimadora.

Sem quaisquer referências que imponham limites à imaginação, nossas perspectivas ganham variáveis para as quais não existem parâmetros ou indicadores. E isso nos permite criar alternativas nunca antes pensadas. Ao mesmo tempo, a falta de parâmetros nos restringe quando não nos vemos capazes de agir. Esse mundo digital é tão amplo que pode reduzir as possibilidades de percepção sobre a materialidade do que reconhecemos como mundo real.

É um paradoxo interessante. O professor e ex-colunista da Folha de São Paulo Luli Radfahrer escreveu um artigo que aborda com propriedade essa questão. Intitulado “Realidade Diminuída”, o artigo trata das possibilidades de “edição em tempo real” que as tecnologias digitais cada vez mais móveis são capazes de efetivar através de recursos de realidade aumentada. Ao projetar imagens produzidas artificialmente ou apagar registros do mundo material através de telas individualizadas, a noção de realidade passa a ser uma representação bastante estranha mas exponencialmente fértil para quem a deseja a seu modo.

Temos visto isso em óculos de realidade virtual, smartphones e dispositivos dos mais variados tipos. E o cotidiano está repleto de exemplos simples. As novas gerações utilizam recursos de mediação à distância para agir em diferentes situações: brincam juntos, estudam juntos, produzem trabalhos juntos, tudo através da tela de um computador. As possibilidades são exponencialmente amplas ao mesmo tempo em que os processos de socialização são reduzidos a simulações tecnológicas de contato humano.

Essa realidade reduzida, como propõe Radfahrer, em certa medida tende a atrofiar capacidades humanas justamente para atender à exponencialidade que o universo digital estimula. Sempre é bom repetir: dar respostas à simulação de situações reais não é o mesmo que dar respostas à realidade em si. A menos que consideremos a simulação uma realidade satisfatória. Os óculos de realidade virtual podem simular o passeio em uma montanha russa com sensações bem “reais”. Mas não substituem as experiências vividas concretamente no brinquedo. São “atividades” distintas que desenvolvem capacidades distintas.

Potencialidade e autenticidade

Esther Paniagua, jornalista científica e comunicadora, expõe ainda mais a fratura cultural que promove desigualdades e empurra para extremos opostos os que aproveitam as oportunidades do mundo digital, de um lado, e os que veem as limitações geradas pala globalização e pela “tecnologização”, de outro. À medida que crescem as oportunidades exponenciais no universo digital, o “mundo real” se vê às voltas com problemas sociais cuja solução depende de valores que podem estar se dissipando por causa das simulações produzidas pela virtualização das ações. E isso traz consequências que não estão em pauta, como lembra a própria Esther:

“Cabe perguntar se realmente os carros autônomos são uma inovação tão essencial a ponto de gastar milhões de euros em seu desenvolvimento e eliminar tal quantidade de empregos”.

É realmente uma questão complexa e que reforça o paradoxo do qual tratamos até aqui. As soluções para nossos problemas estão nas pessoas ou nas tecnologias? As ações capazes de nos dar alternativas pertencem à inteligência biológica da qual os seres humanos são herdeiros ou fazem parte de uma inteligência não biológica, exponencialmente mais esperta? O propósito do desenvolvimento humano é gerar oportunidades e imputar a cada indivíduo o destino de si mesmo ou criar condições para que possamos construir oportunidades coletivas e responsáveis socialmente?

Podem parecer perguntas excessivamente abstratas, mas estão presentes no dia a dia das organizações em quaisquer instâncias de atuação. Do mercadinho da esquina às multinacionais transfronteiriças, da escolinha do bairro às instituições de ensino premiadas pela produção científica, da família tradicional aos complexos arranjos de convivência humana, estamos até o pescoço nesse paradoxo. A ideia de que precisamos “aprender a aprender” traduz um pouco os desafios aos quais estamos limitados.

Uma pessoa capaz de responder às simulações projetadas em um treinamento pode não ser realmente competente para agir quando o “mundo real” imputar a ela o poder de decisão sobre o que e como fazer. O que ela traz de potencial pode não se efetivar como capacidade autêntica, reconhecida e, por isso mesmo, valorizada. “Saber aprender”, portanto, tem surgido como uma das competências essenciais para preparar as pessoas quanto ao futuro em todas as instâncias da vida, especialmente no mundo do trabalho.

Noções de competência e processos de gestão da aprendizagem

Etimologicamente, o termo competência vem do latim “competere”, que significa “lutar” ou “procurar ao mesmo tempo”. Os estudos são recentes e remetem à Idade Média, quando supõe-se que o termo passou a ser usado para designar um sentido de justiça, uma capacidade para julgamento no campo jurídico e foi ampliado para designar alguém capaz de dominar certos assuntos. Hoje, no entanto, competência é um termo de muitos significados e está associado a contextos muito diferentes. É bastante controverso, por exemplo, quando associado à educação e ao trabalho.

Diz o pesquisador Guy Le Boterf que competência, em síntese, é um “saber agir reponsável” e “reconhecido pelos outros”. Trata-se de um conjunto de referências construídas cognitivamente em ação, envolvendo fazeres técnicos, sistemas de valores e normas, certos comportamentos, relações sociais e de produção, estratégias, isso no caso de ambientes técnico-profissionais. Le Boterf direciona seus estudos a questões relacionadas ao mundo do trabalho, mas ajuda a pensar noções de competência em diferentes instâncias de atuação.

Essa interpretação expressa diferentes saberes inscritos na capacidade de agir, que incluem a mobilização de recursos, a transferência de conhecimentos, a própria aprendizagem no momento da atuação, o engajamento e a visão estratégica, além das responsabilidades a serem assumidas no momento da ação. É como que um processo de “qualificação” diante dos desafios a serem enfrentados e das respostas potenciais para a situação vivida.

Digamos que a trajetória que construímos ao longo de nossa carreira, grosso modo, constitui o que Le Boterf chama de profissionalização. E as formas como desenvolvemos essa trajetória consolidam os processos de qualificação. Há aspectos individuais desejáveis de busca, de esforço, de motivação, mas é necessário que haja também oportunidades para que esses aspectos individuais possam ser reconhecidos e valorizados.

A questão central é entender se o propósito do que se vai desenvolver enquanto capacidades está adequado ao que se espera. As simulações, o treinamento em ambientes planejados, as explicações sobre como se deve fazer algo, os exemplos de como determinados problemas podem ser resolvidos, enfim, os recursos de aprendizagem disponíveis para “educar” as pessoas e desenvolver nelas certas capacidades não são suficientes para “garantir” uma atuação adequada quando chegar o momento de enfrentar concretamente os desafios.

O ambiente de trabalho, como já dissemos, precisa estar preparado para lidar com os erros e gerar oportunidades de atuação que reforcem o processo de aprendizagem iniciado num treinamento ou em quaisquer atividades propostas para envolver as pessoas. Competência, independente do conceito, está sempre relacionada a esquemas de ações. E isso significa que, para desenvolvê-las, é preciso atuar e avaliar se as ações correspondem ao que se deseja enquanto resultado.

O que não se pode esquecer é que ações implicam movimento de diferentes naturezas. O ato de pensar se equivale ao de aplicar técnicas com agilidade quando as respostas não estão dadas previamente. Em processos de aprendizagem, compreender isso é tão necessário quanto entender quais capacidades o futuro nos pede e que respostas são possíveis para as situações que sequer vivemos ainda. Aprender, atuar e avaliar são ações cada vez mais enraizadas no mundo do trabalho. Porque exponenciais são as variáveis de quaisquer problemas e não apenas as ferramentas que nos ajudam a solucioná-los.

Luciano Bitencourt

Formado em Jornalismo, é professor universitário daquela graduação há mais de 15 anos. Já atuou como repórter e participou de diversos projetos na área. É sócio-proprietário da Akademis.