Valorizar o potencial humano de transformar a realidade é o desafio dos projetos educacionais

julho 18, 2017 | por Luciano Bitencourt

David Deming, pesquisador de Harvard, publicou neste ano um estudo interessante sobre a empregabilidade nos Estados Unidos. O título do trabalho fala por si mesmo: A crescente importância das habilidades sociais no mercado de trabalho. Diz o estudo que, entre 1980 e 2012, empregos que pedem maior grau de interação humana cresceram em oportunidades e salários. São funções em que a tecnologia está associada aos resultados de produtividade, mas não à atividade produtiva propriamente dita.

As chamadas habilidades sociais tornam-se essenciais justamente no momento em que a produção industrial investe em “agentes virtuais” para ajudar na gestão de informações para tomadas de decisão e em máquinas para acelerar e baratear a mão de obra. De acordo com a pesquisa de David Deming, “empatia, flexibilidade e cooperação” são difíceis de substituir com as tecnologias que conhecemos.

O cenário é interessante, na medida em que surgem conceitos novos, tão diferentes que soam de maneira estranha para nós. A Inteligência Paralela é um deles. Essa concepção fomenta a ideia de que inteligências não biológicas que aprendem começam a atingir um nível de resultados acima do esperado. É uma derivação, portanto, da Inteligência Artificial. A questão é controversa, mas ajuda a pensar o tempo em que vivemos e a educação como processo formativo para agir no contexto em que estamos mergulhados.

A Inteligência Paralela é descrita, em termos simples, como a aplicação de um conjunto de leis específicas e complexas para analisar uma grande quantidade de dados. Como exemplo, os pesquisadores falam de um agente computacional que, depois de jogar mais de 30 milhões de partidas com ele mesmo, aprendeu a vencer o maior especialista humano no “go”, um jogo milenar chinês de estratégia, bem mais complexo que o xadrez. É como se o computador reunisse a inteligência de todos os humanos que o “ensinaram” e a sua própria capacidade de aprender.

Digamos que seja uma outra espécie de inteligência. Cognitivamente, a inteligência humana parece muito distante, uma vez que nossas experiências individuais são limitadas se comparadas à capacidade de processamento de um computador. Não somos páreo para as redes neurais computacionais. Mas as redes sociais, os laços humanos que buscam transformar a realidade também não são “compreensíveis”, ao menos ainda, para a computação cognitiva. Talvez nós, humanos, tenhamos mais capacidade de aprender com as máquinas do que elas conosco.

 

Experiência e noções de realidade

Dito de modo simples, quanto mais mediadas por tecnologias digitais, mais distantes são nossas experiências individuais imediatas sobre a realidade. Um passeio pelo street view do Google em nada se compara com uma visita in loco às ruas vistas na tela do computador. Mas a ferramenta se mostra muito eficiente para que possamos, por exemplo, antecipar lugares que pretendemos visitar quando viajamos. A questão aqui está na noção de realidade que experiências tão diferentes proporcionam.

O tempo em que vivemos é repleto de estímulos que simulam a realidade. Quando assistimos a uma notícia nos telejornais, por exemplo, temos a noção de que tudo o que está na tela aconteceu do jeito que foi descrito. Mas não dá para pensar assim. Os telejornais trazem em audiovisual algumas versões possíveis da nossa realidade. Só temos acesso a descrições verossímeis, mas distantes de nossas experiências individuais imediatas. O próprio jornalista que traz sua versão dos acontecimentos, na absoluta maioria das vezes, não presenciou in loco o que descreve. Geralmente as imagens não são do acontecimento em si, mas de suas repercussões. Podemos saber o que acontece no mundo através das notícias, mas não temos como compreender a realidade de quem vive os acontecimentos sem presenciá-los.

Indo um pouquinho mais adiante, mesmo quando estamos presentes em acontecimentos importantes nossa percepção é limitada pelo ponto de vista que temos. Podemos estar num lugar privilegiado, ter um conhecimento amplo sobre o contexto em que um acontecimento importante se inscreve, mas, ainda assim, é uma visão limitada. A vantagem cognitiva de um computador pode estar justamente na possibilidade de avaliar todos os pontos de vista possíveis e formar uma concepção de realidade mais “completa”. E mesmo nesses casos, é uma noção parcial da realidade.

Nossa “vantagem” é outra. A limitação que descrevemos aqui não chega a ser um problema. Noções de realidade dependem tanto das experiências individuais imediatas quanto dos laços sociais que nos permitem ampliar perspectivas de interpretação porque se somam às dos outros. A inteligência humana não é só cognitiva. É também social, no sentido de transformar a realidade com os outros. Portanto, a convivência e a partilha de experiências são essenciais para a aprendizagem.

 

Tecnologias digitais e educação

Valorizar o convívio social e propósitos coletivos não significa negligenciar as tecnologias digitais e a capacidade inerente ao uso delas para simular a realidade em determinados aspectos do nosso processo de formação. Simuladores, aliás, são ferramentas bem oportunas para antecipar decisões de risco e treinar habilidades específicas, como na aeronáutica e na área médica, por exemplo. O problema do treino pela simulação é que as situações “reais” impõem variáveis muito difíceis de prever. Portanto, as habilidades treinadas oferecem uma parte do repertório necessário para responder à situação vivida.

As noções de realidade influenciadas pelas tecnologias digitais oferecem uma série inimaginável de possibilidades para “estudar” nossa realidade. Mas essas tecnologias são também traiçoeiras em suas simulações porque tendem a “simplificar” contextos em que as situações vividas acontecem. Como ferramentas educativas, precisam ser pensadas em contexto, analisadas em circunstâncias adequadas.

A “realidade virtual” oferece imersão, mas pode nos fazer crer em noções paralelas de realidade; a “realidade aumentada” oferece possibilidades de interpretação quanto ao tempo e ao espaço em que vivemos, mas pode reduzir nossa compreensão sobre o mundo que nos cerca por apagar certos traços da realidade em que vivemos; a “realidade midiatizada” oferece informação em escala exponencial, mas é só uma pequena parte do que precisamos para entender nossa realidade.

Essas noções de realidade não são novas. Em Paris do Século XIX, experiências com som binaural transmitidos por “telefone” permitiam que as pessoas ouvissem concertos à distância em “3D”. A tecnologia gerou serviços por quase meio século e ainda é muito eficiente em vários aspectos. Poderíamos dizer que o som binaural é uma tecnologia de “realidade virtual” hoje “acoplada” a dispositivos com recurso de imagem.

Para processos educativos, as noções de realidade simuladas pelas tecnologias digitais constituem ferramentas importantes quando associadas ao desenvolvimento de habilidades sociais. O convívio humano deve sempre ser posto em primeiro plano em quaisquer projetos vocacionais a desenvolvimento de pessoas. Ao contrário das máquinas que aprendem, a capacidade humana de aprendizagem está nos laços e no valor das experiências.

Como sugerem os estudos de David Deming na conceituada Harvard, foram as habilidades sociais que impulsionaram oportunidades e salários no mundo do trabalho. Mesmo que esta seja uma noção da realidade possível, os indícios são suficientes para nos fazer crer no potencial humano em meio às máquinas que aprendem.

 

 

Luciano Bitencourt

Formado em Jornalismo, é professor universitário daquela graduação há mais de 15 anos. Já atuou como repórter e participou de diversos projetos na área. É sócio-proprietário da Akademis.